A indignidade do trabalho infantil em áreas públicas
Artigo publicado pelos procuradores Xisto Tiago de Medeiros Neto e Luis Fabiano Pereira, na Tribuna do Norte, no Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil
Xisto Tiago de Medeiros Neto
Procurador Regional do Trabalho e professor da UFRN
Luis Fabiano Pereira
Procurador do Trabalho e Coordenador regional do combate ao trabalho infantil
O trabalho de crianças e adolescentes ocorre cotidianamente em espaços públicos, a exemplo de ruas, avenidas, praças, canteiros e praias. A realidade desse quadro de indignidade, por força da sua repetição, tem se tornado invisível para parte considerável da coletividade, que parece estar acostumada e, de certa forma, insensibilizada.
Os registros estatísticos mais recentes demonstram o crescimento da violação aos direitos mais fundamentais de meninos e meninas, no âmbito do trabalho, refletindo o desrespeito à Constituição Federal, que em seu art. 227 estabelece o dever da família, da sociedade e do poder público de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, a profissionalização e ao lazer, entre outros, além de proibir expressamente toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão.
Os dados oficiais colhidos na última pesquisa realizada pelo IBGE são contundentes quanto a espelhar essa realidade grave e nefasta. Em 2022, constatou-se que havia 1,9 milhão de crianças e de adolescentes com 5 a 17 anos de idade em situação de trabalho infantil, o que representa aumento de 7% em relação aos números de 2016. Outra constatação vergonhosa é que, pela primeira vez, desde a década de 1990, o trabalho infantil voltou a crescer, encerrando um longo período em que a atuação do Estado brasileiro e de instituições comprometidas com a causa parecia haver encontrado o caminho da erradicação.
É consenso universal, proclamado por Convenções adotadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o trabalho infantil ofende e avilta a dignidade do ser humano, impedindo-o, na fase inicial de percepção da vida, imprescindível para o seu desenvolvimento, de vivenciar as experiências, o aprendizado e as descobertas compatíveis com o crescimento. E não somente isso: priva a criança e o adolescente de ir à escola ou nela permanecer; submete-os a tarefas estafantes, repetitivas, muitas vezes insalubres ou diretamente prejudiciais à sua saúde física e psíquica; gera doenças com sequelas e riscos iminentes de acidentes e lesões irreversíveis; sujeita-os a longas jornadas de trabalho; impossibilita-os de alcançar uma formação profissional; torna-os suscetíveis a abusos, inclusive de ordem sexual, e a maus-tratos.
Há de se reconhecer e denunciar, igualmente, a persistente mentalidade enganosa, defendida sem nenhuma base científica ou empírica concreta e resultante da longa história de labor servil e escravidão em nosso país, traduzida pela ideia de que o trabalho “faz bem” para crianças e adolescentes menores de 16 anos, preparando-os para a vida adulta.
Na verdade, certo é que a ausência de perspectiva socioeconômica e a insistência de um certo padrão cultural atrasado e pernicioso, conjugam-se no sentido de possibilitar que crianças e adolescentes pobres e em situação de vulnerabilidade submetam-se ao trabalho, sem que haja consciência quanto à sua ilicitude e aos direitos e deveres básicos assegurados pela lei a todos, sem exceção.
Não há dúvida de que as imposições da miséria, a desagregação progressiva da estrutura familiar das camadas mais desfavorecidas da população, a pouca experiência de vida da criança e do adolescente, e, também, a condição de dependência e subordinação que decorre da relação de trabalho são fatores que contribuem, preponderantemente, para a continuidade desse triste cenário de irregularidades e descaso.
A busca de soluções para problema tão complexo não pode ser descuidada ou arrefecida. É tarefa legal impostergável, a percorrer os caminhos da conscientização das famílias e da sociedade; da iniciativa de denunciar-se as irregularidades e abusos verificados; da parceria de esforços entre o Poder Público e a sociedade organizada para a adoção e o aperfeiçoamento de políticas públicas eficazes e progressivas voltadas para a proteção e a garantia dos direitos das crianças e adolescentes, além da inclusão social das suas famílias em programas de emprego e renda.
Além disso, constitui dever institucional a atuação integrada em demandas e ações efetivas de responsabilidade dos Ministérios Públicos do Trabalho e do Estado, do Poder Judiciário, dos órgãos de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego e dos Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares.
O compromisso com a proteção às crianças e adolescentes que se encontram em situação de trabalho – em idade e atividades proibidas por lei –, já não tem mais espaço – nem tempo – para longos diagnósticos, discursos retóricos, propostas abstratas ou promessas desconexas com o contexto presente.
A reflexão faz-se necessária, principalmente neste 12 de junho, que foi instituído pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2002, como o dia mundial contra o trabalho infantil.
E isso aumenta a responsabilidade na tomada de atitudes corajosas e adequadas pelo poder público, instituições e sociedade na busca da erradicação do labor proibido a crianças e adolescentes, sob pena sermos condenados pela omissão e pelas consequências de uma chaga social disseminada em nosso tão injusto quanto incompreensível “mundo moderno”, que, não resistindo a um olhar crítico, parece pouco ter de civilizado.
Publicado em 12/06/2024